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  • Setembro amarelo, meus amigos e eu: Existe uma aura densa em cima das nossas cabeças

    Setembro amarelo, meus amigos e eu: Existe uma aura densa em cima das nossas cabeças

    Existe uma aura densa em cima das nossas cabeças, um cheiro de morte que não cessa.  Quando cada vez que parece que as coisas estão encontrando um novo lugar, o vazio aparece, remove o contorno da presença de alguém, mais alguém que se foi — muitas vezes, antes da hora.

    “Eu amo vocês 
    Eu só tô defendendo uma parada que é pra sempre
    E nunca mais volta
    Lá vem a morte
    Cheiro de dor
    O céu é forte
    Eu também sou
    Lá vem a morte
    Cheiro de dor”

    Trecho de “Lá vem a morte” da banda Boogarins

    Eu me acostumei com a visita frequente da morte, mas ela não deixa de me machucar. Tudo começou no dia das mães de 1998.  Fui avisado que ela e minha avó tinham ido ao enterro da minha tia avó, Edinaura, que morreu precocemente com complicação da leptospirose.

    Em memória / In memoriam

    Depois dela me lembro que no decorrer dos meus 35 anos se foram Marcel, Nelson, Fúcsia, Claudinho e Thiago, meus amigos e amigas, meus amores que tiveram suas vidas ceifadas muito cedo. E eu, hoje, após quatro tentativas frustradas me pergunto como consegui levar adiante a minha própria vida e como, depois de ter aceitado o fracasso no suicidio.

    Talvez eu ainda me lembre daquele sentimento de fraqueza e a unica maneira de me sentir forte foi prometendo que eu iria viver a partir de agora por teimosia, que eu iria até o momento que tinha que ir, e então pensei como transmitir um pouco desses sentimentos agridoces para para aqueles que estão ao meu redor?

    Parabéns pra você


    O  meu aniversário sempre foi algo difícil para mim, há alguns anos percebi que havia possibilidade de um certo tipo de fracasso, da ausência de amigos na comemoração, ou apenas por não sair nada como planejei que são os motivos aparentes dessa sensação. Não sei como vou me comportar. Mas esse ano, logo antes do meu aniversário, o meu melhor amigo pulou do 40º andar de um prédio no centro de São Paulo. Não foi nada fácil de entender, mas com o tempo algumas coisas ficam menos dolorosas e mais analíticas, não sobre quem foi, mas sobre quem ficou, no caso eu.

    Celebrar é preciso

    Meu mundo mudou, minha rotina, meus sentimentos, minha maneira de ver o mundo sofreu um deslocamento de retina e agora não sei voltar para como era antes, nem sei se quero, mas senti tanta dor que achei que não fosse suportar.

    E por isso tenho pensado sobre a importância de realmente celebrar minha existência de vida a cada ano, com pessoas que se importam comigo, que estão convivendo ao meu lado. Porque é realmente difícil você conseguir acreditar e viver (não apenas sobreviver) nesse mundo. A vida não é fácil.

    Lutando todo dia

    Se tantos amigos não resistiram, obviamente que eu fiquei realmente com medo de também não resistir, não apenas eu, mas minha mãe que me deu um suporte e sofreu muito junto comigo, por me ver triste. Muitas lágrimas caíram, o luto é um dos sentimentos mais densos e complexos que eu já pude sentir. Talvez ver o contorno de alguém não existir mais no mundo e como as pessoas seguem suas vidas é que no começo doa tanto. 

    Foto _ Em memória: Thiago Roberto, 2023

    Lavar os copos, contar os corpos e sorrir. A essa morna rebeldia

    Mas é que a gente continua seguindo pela força que o mundo tem ao girar, então nos resta ou aceitar e sair produzindo sentido de vida, tentando fazer com que a sua existência e o legado e memória de quem se for, valha a pena ou ficar moribundo triste no canto. Realmente o que a gente precisa nessa fase é força.

    O silêncio é algo que precisa de espaço, algumas coisas estão ali, guardadas no fechar da boca, no ouvir e observar.

    O silêncio é algo que precisa de espaço, algumas coisas estão ali, guardadas no fechar da boca, no ouvir e observar, estive contemplando por muito tempo para que assim, agora, quando eu voltasse ao compartilhamento dos pensamentos, escrever, falar e vibrar sobre os meus caminhos de autoconhecimento.

    Comecei a falar com amigos, família,meu ex-namorado e minha terapeuta sobre a morte em si, sem medos, sem rodeios, tanto a figura fictícia que carrega uma foice, e como se ela tomasse uma visão antropocena, como no seriado Sandman, mas também como um rito de passagem, uma manifestação que é propriamente da vida. E isso, eu entendi, ou ouvi de alguém que falar da morte é uma maneira de afastá-la.

    Não sei de onde tirei essa ideia, mas tem funcionado, e tenho pensado na ausência e como podemos conhecer detalhes de alguém que faleceu justamente pelo espaço que ela deixou ali, pelas conexões de pessoas que se aproximaram devido ao que aquele humano afetou.

    Mas também tenho observado que esse tema percorreu os meus últimos seis meses, até o momento em que chegamos no Setembro Amarelo, o mês dedicado à saúde mental e à prevenção do Suidicio.

    Falar da morte é uma maneira de afastá-la.

    Agora é o momento que devemos falar sobre isso. Entendo que a sociedade pode suicidar alguém, que a retirada da própria vida é uma busca por alívio de dor afetiva e que não está dissociada. Hoje o suicidio mata mais que a guerra, mais que a AIDS, sendo um dos maiores (se não me engano, o maior) fator da fatalidade entre jovens de 14 a 29 anos.

    O processo depressivo é algo que eu vivo e que tenho tratado, mas como alguém que já perdeu muitos e já tentou tirar a própria vida, eu posso compartilhar algumas questões sobre como ajudar alguém que está pensando sobre o assunto.

    As minhas palavras não se curvaram ao assumir que sim, perder todos esses amigos nos últimos anos me deixou assustado, com medo, em processo depressivo mais intenso novamente após anos longe do tratamento.

    Sempre priorizei cuidar dos projetos coletivos, mas é interessante se perceber que eu me isolei e que tentei ao máximo manter distância de viver em sociedade, parece que foi uma forma de fazer o mundo parar pra mim. O cuidado que me preocupei em manter foi uma rede forte de poucos amigos que eu sei que poderia contar e que não estavam tão fragilizados quanto eu. 

    Minha terapeuta, alguns livros, músicas e séries foram meu refúgio, mas a quem eu devo a minha cura nesse momento foi a escrita. Voltar a escrever, assim como desenhar me deu força para perceber cores, alegrias e sensações que me levaram para longe da melancolia tão forte do luto.

    Viajar e sair um pouco do mesmo ambiente que estava acostumado, mesmo que por poucos dias foi também fundamental para entender a divisão do tempo, e que voltando da viagem eu poderia começar ou recomeçar algo. 

    divisão do tempo, e que voltando da viagem eu poderia começar ou recomeçar algo. 

    Luto: Angela RoRô

    Este site nasce do nome da canção escrita por Léo Jaime e interpretada também por Angela RoRô “Sucesso Sexual”, nesta terça (09) no dia que estavamos seguindo com o upload desse site e deste texto, nos deparamos com a notícia da morte de Angela, essa cantora que enfrentou a sociedade com seu jeito único.

    Ela, lésbica, com questões polêmicas publicamente nunca foi alguém de mentira, morreu aos 75 anos com complicacções de uma infecção hospitalar.

    Quando estavamos nas primeiras reuniões de pauta, nossa preocupação eram as manchetes que já apareciam falando sobre a vida de Angela neste momento, ganhando apenas R$800 para sobreviver, com um semblante cada vez mais magro e doente.

    Infelizmente não conseguimos entrevista-la, nem mesmo tentar fazer algo a respeito da situação dela, o que me leva a pensar que mais uma pessoa foi morta pelo estado e por todos nós, sociedade consumidora de juventude, pelo descaso com uma das mulheres lésbicas mais confrontativas diante do conservadorismo. Em coletivo também estamos morremos aos também, mesmo que só nos reste viver.