Angela Ro Ro: só nos resta viver

Texto: Pedro Alexandre Sanches

Fotos: Divulgação / Diagramação: Eduardo Araújo Silva

Angela Ro Ro (1949-2025)se impôs ao Brasil em 1979, com um álbum de estreia sem título cujo carro-chefe era a delicadíssima balada “Amor, Meu Grande Amor” – não só essa canção, mas o LP inteiro era um espetáculo de lirismo e entrega abandonada, um dos grandes trabalhos da música brasileira na década que estava se encerrando. O que Angela começava a trazer a público ali teria repercussão forte e contundente na música, na cultura e no comportamento do Brasil na década que chegava e nas que viriam depois. 

No entanto, desde muito cedo Angela Ro Ro se viu deslocada das páginas e editorias de cultura, de onde nunca deveria ter saído, para as manchetes policiais. O fetiche provocado pela sua personalidade e pela sua arte passou a residir bem menos nas canções que em imagens degradantes nas quais ela era atirada com a namorada dentro de um camburão. Talvez fosse mera coincidência, mas acontece que Angela, além de mulher e compositora de obra própria, era lésbica e declarava-se aos quatro ventos, com toda a liberdade que reivindicava e merecia – muitas e muitos outros também eram, mas nenhum (com a provável exceção de Ney Matogrosso) com o grau de desassombro, transparência e entrega de Ro Ro.

Do lado de lá da muralha dos “bons costumes” (como se dizia então), a reação veio a galope: havia uma fera selvagem, perigosa e incontrolável escondida por baixo da sutileza e da mansidão de rocks, blues e baladas como “Gota de Sangue”, “Tola Foi Você”, “Mares da Espanha”, “Balada da Arrasada” e inúmeras outras canções que Angela gravou na primeira década de carreira. Pelo menos era isso que nos era empurrado goela abaixo por uma tropa de choque da pesada, composta pelos então chamados formadores de opinião alocados na mídia, pela moral preconizada (mas não necessariamente praticada) pelos censores a serviço da ditadura civil-militar, pelas polícias militares e civis que desciam o porrete sem piedade nem qualquer decoro em prostitutas, viados, lésbicas, travestis & outros dissidentes exilados da tradição, da família e da propriedade. Como desenhado didaticamente por Chico Buarque no mesmo ano da estreia de Ro Ro, “joga bosta na Geni” (uma travesti) era a norma socialmente aceita, desejada e incentivada pelos gorilas de farda e seus puxa-sacos.


Angela jamais se cansou de denunciar que era repetidas veze submetida a grotesca violência policial, e aqui convém nunca esquecermos os métodos usados pela repressão política-policial da dita dura, que envolviam tortura, assassinato, estupro, privação ampla e irrestrita de qualquer direito humano ou dignidade. “Sou uma moça sem recato, desacato a autoridade e me dou mal”, respondia Angela em “Agito e Uso”, logo no início, já prevendo a barra pesada que vinha por aí. Em 1981, a faixa-título do disco Escândalo, presenteada por Caetano Veloso, tentava recolocar as coisas em seus merecidos lugares e reconverter desrespeito e sensacionalismo em poesia e filosofia: “O grande escândalo sou eu, aqui, só”.

Sim, porque até não muitos anos atrás ser LGBTQIAP+ (essa sigla ainda não existia) era sinônimo de solidão, punição, pancada, marginalidade, cadeia e execração pública. Se hoje temos Pabllo Vittar e Catto e Bia Ferreira e Rico Dalasam e Maria Beraldo e Johnny Hooker e Linn da Quebrada e Jup do Bairro etc. existindo artisticamente com relativa liberdade, integridade e paz, é porque Angela Ro Ro andou, correu e apanhou para que nós pudéssemos levitar. 

Falta muito a conquistar, e o pouco (ou não tão pouco) que temos pode ser perdido num soprar de bafo do capeta, como verificamos em 2016 e em 2018. Por isso mesmo, é bom não esquecermos que não estaríamos de mãos dadas na rua, nem galgando lugares na sociedade, nem pelados e livres na festa se não fosse a existência de um monte de gente que lutou (e tombou pelo caminho, na maioria dos casos) feito Angela Ro Ro, Ney Matogrosso, Marina Lima, Cazuza, Renato Russo, Vange Leonel, Cássia Eller…

E Angela, como reagia à cota de violência e agressão que a destruía a cada dia? Provavelmente caía na pilha dos odiadores. Às vezes fazia exatamente o que os abutres a incitavam a fazer. Talvez se perguntasse se lá no íntimo não era mesmo aquela monstra que pintavam para difamá-la. Artisticamente, na contramão, devolvia as farpas e agulhas e socos ingleses com beijos e flores musicais, cantando, por exemplo, assim: “Quem dera pudesse/ a dor que entristece/ fazer compreender/ os fracos de alma/ sem paz e sem calma/ ajudasse a ver/ que a vida é bela/ só nos resta viver”. Se continuamos a respirar todo dia, é por causa de Angela Ro Ro, e a vida é bela, e só nos resta viver.


Ouça: Angela Ro Ro – Sucesso Sexual (Pejota Fernandes TOC)

Pedro Alexandre Sanches

Editor de Farofafá, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de “Tropicalismo – Decadência Bonita do Samba” (Boitempo, 2000) e “Como Dois e Dois São Cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)” (Boitempo, 2004)